carta a Smetak

 

carta a Smetak

 

logo nos primeiros sinais de som fui transportada a uma aura indiana, seria um banjo? mas em seguida me sinto arrastada por um gancho metálico, uma atmosfera de suspense mesclada a toques de um teclado infantil

o peso das cordas, a vibração da ressonância, o arranhar de garfos

tudo muito, muito metálico

um ginge

cá está novamente, som de cordas ritmadas tal qual uma sanfona

uma buzina de trânsito no horario de pico

mais ginge

uma orquestra verdadeiramente metalizada, microfonias berrantes, a estática de um rádio, sons do futuro, beirando sons do sertão

quase um alienígena ancestral

um berimbal violonizado

e de repente, ecoam os gemidos de seres astrais há anos-luz de nós

talvez não sejam gemidos, talvez eles só estejam se comunicando entre si e sem querer sintonizamos nessa estação

perdidos estamos nós

os instrumentos indianos continuam retornando, isso me agrada

me traz uma sensação de amplitude mística

sons circenses

uma mistura de buzinas, vuvuzelas, tambores, agudos sutis, cordas e apertos

aos 12 minutos sou transportada a programas de minha infância, que não sei quais são, apenas pelos sons, algo como a TVE, em sua programação vespertina... contrapondo-se à sessão da tarde no Globo, às novelas mexicanas do SBT, aos programas de fofoca ou televendas lutando por nossa atenção na Record ou na Band

em seguida, melodias melancólicas despertam em mim tristezas enterradas e suturadas, como um espectro do passado

mas não, tem algo de aconchegante nesse estado das coisas, como que familiar

a familiaridade é

melancolias sertânicas, como em um filme de Guel Arraes

flautas solitárias em meio à multidão de um entardecer do sertão, aquele que me é familiar nos caminhos à antiga Jacobina

sopros curtos e constantes me transportam a atmosfera da mata, um lugar de aterramento

expansividade acolhedora

e de repente a alegria quase triste de acordes sambados ou serenatados

trilha sonora de filmes bossa nova que me lembram infância por retratarem tempos antigos, tempos da infância de meus avós, onde o código de conduta era outro e por isso nostálgico

apesar de não ter experienciado isso

aos 22 minutos parece que ele sintoniza em um videogame Nintendo

parece que todos os sons me são muito nostálgicos, verdadeiramente me transportam a uma sensação boa, a uma infância distante e intocável

tons baixos me relaxam, me dispersam

tons entrecortados me lembram de quando eu era criança e fingia saber tocar instrumentos e ao mesmo tempo, secretamente, tentava acertar como alguém que sabe

acordes que me remetem a novelas, novamente: infância

o que é esse som? parece o sopro do vento, o farfalhar de folhas, o brilho da chuva...

algo que não consigo identificar, mas me é familiar como algo sendo afiado, e quando mergulho, uma multidão de crianças gritando e conversando entre si, como numa saída de escola

tambores improvisados, flautas de animar

tudo destinado às crianças

flauta de chamar passarinho

pires caindo no chão, bordas de vidros sendo acariciadas, estimuladas

uma miríade de paisagens e memórias dentro de cada milímetro de som

a tourada sendo chamada, através do seu próprio chifre

que coisa conveniente e traiçoeira

motor, navio, sopro, motor, moto, estrada, escuridão

paudechuva

microfonia

uma igreja gótica, um cortejo de casamento... ou será de funeral? o som de bandolim acompanha

de repente sou sugada pelo espiral de sons em direção ao desconhecido do novo, registrado em minha memória, em algum momento longínquo vivido

e a bossa nova retorna, dessa vez ela me leva a Salvador, aos sons que levam a Itapuã, como na canção de Toquinho e Vinicius

uma orquestra singela, que me leva novamente a um estado de aconchego de infância

um violino de crepúsculo, um violão de luar

algo meio tropicália

sons detalhados que só os mais atentos e silenciosos olhares alcançam a perceber

 

28.04.2022

BO


escrito realizado a partir da audição do albúm INTERREGNO (1980) - Walter Smetak & Conjunto de Microtons, para o componente de Plástica Sonora, ministrado por Andrea Rios May

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